FOLHA DE S.PAULO 

Diogo Bercito

Uma fatia do eleitorado americano vota na terça-feia (3) torcendo para que venha a tempestade.

Eles não estão esperando um temporal. A tempestade a que se referem, em código, é outra. É como chamam o dia em que Donald Trump revelará que uma seita de pedófilos adoradores de Satanás controla o mundo —gente como o ex-presidente Barack Obama, o ator Tom Hanks e o papa Francisco.

Esse grupo, conhecido como QAnon, é certamente marginal entre a população. Mas é uma minoria barulhenta e organizada que ganhou espaço no debate público ao lado de outras teorias da conspiração.

Como aqueles que creem que a Covid-19 foi criada em laboratório, eles têm uma profunda desconfiança nas instituições públicas e apostam em figuras de fora do sistema.

Membros do QAnon afirmam acreditar inclusive que têm o apoio de uma dessas figuras antissistema: o presidente Trump. O republicano se recusou repetidas vezes a desmentir o QAnon e, recentemente, disse que sabia pouco sobre o tal grupo, mas ainda assim elogiou a ideia de que combatem a pedofilia.

Ele interagiu ao menos 258 vezes com contas ligadas ao QAnon no Twitter, amplificando a conspiração para seus 87 milhões de seguidores.

Pequeno e tímido, escondido nas dobras sombrias da internet, o QAnon pode estender em breve as mãos na direção do poder de que tanto desconfia. A republicana Marjorie Taylor Greene, que diz abertamente crer nas teorias do grupo, deve vencer a disputa para representar a Geórgia na Câmara.

Há outros candidatos ligados ao movimento concorrendo neste ciclo eleitoral.

O QAnon remonta a 2017, quando uma pessoa identificada como Q começou a pregar seu evangelho em recantos da internet. As ideias são estapafúrdias e não têm absolutamente nenhuma base na realidade. Ainda assim, atiçam a comunidade de adeptos.

Um dos apelos é o fato de que o movimento engloba outras teorias da conspiração. O QAnon absorveu, por exemplo, o Pizzagate, corrente nas eleições de 2016.

Segundo o Pizzagate, a então candidata democrata Hillary Clinton comandava uma rede de pedofilia no subsolo da pizzaria Comet Ping Pong, em Washington. Um homem chegou a ir ao local armado. Descobriu não só que aquela ideia era falsa —mas também que a pizzaria nem porão tinha.

Um outro apelo é que o QAnon funciona como uma espécie de jogo, com um aspecto lúdico. Em vez de se sentar no sofá e receber informação pela TV, os seguidores do Q passam o dia navegando a rede profunda, ativamente perseguindo mensagens cifradas e fragmentadas. Existe toda uma linguagem que eles precisam entender antes de absorver as teorias.

Apoiadora de Trump veste camisa com o símbolo do movimento conspiracionista QAnon durante caravana em Adairsville, na Geórgia – Elijah Nouvelage- 5.set.20/Reuters
“É uma experiência bastante satisfatória”, diz Adrian Hon, presidente de uma companhia de jogos de realidade alternativa. Hon tem estudado o QAnon a partir dessa comparação com os games. “O QAnon é complicado e trabalhoso. O usuário precisa pensar. Mas por isso mesmo ele acaba valorizando mais, porque sente que fez uma descoberta.”

Por sua natureza esquiva, é difícil saber quão grande o grupo realmente é. O professor Joseph Uscinski, da Universidade de Miami, estima que cerca de 5% da população acredita nele.

O QAnon é muito menos expressivo, assim, do que as teorias em torno da morte do presidente John F. Kennedy em 1963. Também tem menos poder do que as teorias em torno do coronavírus. Segundo a pesquisa de Uscinski, que ouviu 3.000 pessoas, em março, 30% dos americanos afirmam acreditar que a Covid é uma arma biológica.

Isso sem contar, claro, as ideias que para uma parte da população já nem parecem teorias, e sim fatos, como a de que as urnas serão forjadas a favor do democrata Joe Biden —ou a persistente mentira de que Obama forjou seu certificado de nascimento, ideia que, aliás, foi espalhada pelo próprio Trump.

Uscinski discorda que o QAnon esteja crescendo ou que possa se tornar expressivo. A impressão de aumento é, em parte, resultado do fato de que as ideias do grupo têm sido repetidas no espaço público — e ampliadas pelo presidente. Não quer dizer, porém, que mais pessoas acreditem na seita de pedófilos.

“São um grupo pequeno que têm visões negativas do sistema, e as tinham mesmo antes de o QAnon existir”, diz. O QAnon pode desaparecer amanhã, mas seus seguidores continuarão a desconfiar do poder público. “Eles seguirão se sentindo alienados, achando que a política é uma batalha entre o bem e o mal.”