O ESTADO DE S.PAULO – 22/12/2019 

Ubiratan Brasil

A turbulenta política latino-americana sempre fascinou o escritor peruano Mario Vargas Llosa, ganhador do Nobel de Literatura de 2010 – do peronismo argentino às guerrilhas nicaraguenses, o autor não se furta de fazer ácidos comentários. É o que inspirou seu romance mais recente, Tiempos Recios (Tempos Difíceis, em tradução livre), ainda sem versão prevista no Brasil.


A obra se inspira em um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos contra o presidente guatemalteco Jacobo Árbenz em 1954, episódio que Llosa acredita ter sido definitivo para o destino do continente latino-americano.

Na trama, o autor desvenda conflitos e conspirações que devastaram a política regional naquela década. Obcecado pela guerra fria, o governo dos EUA acusou Árbenz de ser um fantoche soviético ao empreender uma reforma agrária contrária aos interesses de um grande conglomerado de frutas.

Llosa tem o olhar de um intelectual liberal, moldado pelas ideias de sete pensadores, que formaram sua base de leitura e fomentaram a defesa da liberdade de expressão como um valor fundamental para o exercício da democracia. O processo de formação desse pensamento é revelado em O Chamado da Tribo (Objetiva), autobiografia intelectual de um jovem que, desgostoso com o marxismo, descobre a tradição de um pensamento que favorece o indivíduo ante um grupo social, uma nação, ou mesmo um partido político e que defende a liberdade de expressão como um valor fundamental para a vivência democrática. Sobre os dois livros, Llosa conversou com Estado, por telefone, de Madri, na Espanha.

Como o senhor analisa a democracia praticada na América Latina?

É muito melhor ter democracias imperfeitas, até corrompidas, que ditaduras que não são eficientes por fomentar a delinquência, o roubo, a manipulação da realidade. Ao menos, não temos, na América Latina atual, ditaduras militares – temos ditaduras ideológicas, presentes em Cuba, Venezuela, Nicarágua. Temos democracias imperfeitas, mas que podem ser corrigidas por meio de denúncias de roubos e das políticas mafiosas dos governos. Temos polícias imperfeitas, mas, no caso do Peru, vemos políticos e empresários que foram presos por má conduta. Isso é um fato novo em nossa história republicana. Ao menos significa um progresso em relação às ditaduras de anos passados, que nunca reconheciam os roubos, a putrefação em que viviam, privilegiando os tiranos que voltavam ricos para suas casas. A situação hoje é outra, tivemos um progresso. Não podemos nunca nos esquecer: a corrupção é uma praga terrível para a democracia, é preciso combatê-la com muita resolução e energia.

E como avalia o liberalismo em prática no continente?

O caso mais notável é o do Chile, que primeiro optou por acabar com uma ditadura feroz, sanguinária, que foi a de Pinochet. Mesmo assim, houve algo positivo para o país, que foi a política econômica que trouxe muita prosperidade.

Assim, o acordo entre a direita e a esquerda para manter essa política econômica dentro da legalidade foi algo extraordinário do ponto de vista político e econômico, pois atraiu um progresso que o Chile nunca teve em sua história, uma política de pleno emprego. E não houve, na América Latina, um país que diminuiu tanto a pobreza, convertendo socialmente essas pessoas em classe média. Então, desse ponto de vista, o Chile era um caso de sucesso e, por isso, não se esperava aquela explosão social que tomou conta do país e que realmente surpreendeu o mundo. As bases materiais não justificam esse tipo de protesto. Mas algo falhou. A impaciência da classe média que se descobre limitada e impossibilitada de alcançar o progresso por causa de um sistema de privilégios é uma explicação. Nesse campo, o Chile não evoluiu como deveria e não criou um sistema de educação e de saúde públicas ao nível da privada. É uma hipótese para tentar explicar algo muito surpreendente.

O senhor acredita, então, que a crise chilena está mais próxima do ocorrido na Europa nos últimos meses que propriamente na América Latina?

Sim, o caso chileno está mais próximo da Europa. Primeiro porque o Chile é quase um país de primeiro mundo. E o que houve lá é parecido com explosões sociais como a que aconteceu na França, com os coletes amarelos. São movimentos claramente populares, sobretudo de classes médias que veem um limite em suas aspirações. Os revoltosos acusam o sistema de haver criado artificialmente esse limite, que impede sua ascensão por causa de privilégios, a setores que se valem de relações para alcançar postos mais altos no sistema. Um tipo de problema que assola praticamente todos os países desenvolvidos. E me impressiona que isso aconteça no Chile.

Como o senhor acompanhou a vitória de Alberto Fernández na eleição presidencial argentina, que promoveu o retorno de Cristina Kirchner, agora como vice?

Foi uma tragédia para a Argentina. Essa vocação suicida dos argentinos é algo verdadeiramente extraordinário, pois já se sabe que todos os problemas atuais do país foram causados pelo peronismo. Portanto, é impressionante que os eleitores reconduzissem ao poder essas pessoas que produzem uma política absolutamente catastrófica. Os argentinos vão lamentar enormemente a derrota de Mauricio Macri – claro que não foi um governo perfeito, mas, mesmo assim, não terá sido pior do que está por vir.

Falando agora de seu mais recente livro,

Difíceis, o senhor acredita que, se os Estados Unidos, em vez de derrubar o presidente guatemalteco Jacobo Árbenz, tivessem apoiado suas reformas, a história da América Latina provavelmente teria sido diferente?

Com certeza, foi um grande erro. Claro que havia um contexto que explicava muitas atitudes – estamos falando da guerra fria, do Macarthismo. Mas houve uma falta de lucidez do governo americano naquele momento. O presidente anterior, Harry Truman, evitou invadir a Guatemala, resistiu às pressões e respeitou o que se passava lá. Mas a América Latina era uma terra de ditadores. Guatemala teve dois governos democráticos e o de Árbenz não era comunista nem socialista – ele queria modernizar um país que vivia ainda na era dos latifúndios com base na democracia moderna, fomentada por empresários independentes, dispostos a pagar impostos. Isso gerou o conflito com a multinacional americana United Fruit, que organizou, por meio de fake news, um aparato publicitário que permitiu a invasão. Se os Estados Unidos tivessem apoiado esse governo democrático, provavelmente a América Latina não teria vivido o pesadelo que durou os 50 anos de guerrilhas em quase todos os países para alcançar o suposto paraíso comunista, à maneira de Cuba. O que aconteceu foi a América Latina se inchar de ditadores militares, provocando a morte de milhares de pessoas. Isso atrasou tremendamente a democratização da região. Foi uma tragédia. Talvez nem a revolução cubana tivesse essa face radical, marxista, comunista, caso a Guatemala tivesse outra sorte.

É curioso o prólogo do livro, em que o americano Edward L. Bernays defende a necessidade de um golpe na Guatemala – a quantidade de inverdades proferidas por ele seria caracterizada hoje como fake news.

E foi uma jogada de grande êxito, pois as pessoas acreditaram nessa ficção tomada por verdade de que a Guatemala era uma praia particular da União Soviética quando, na verdade, não havia um russo sequer no país. Árbenz foi acusado de abrir as portas para a União Soviética. Um disparate. Mas esse fruto de propaganda criminosa – que hoje, sim, seria fake news – fez com que os americanos acreditassem na possibilidade de uma invasão russa.

Quão danosas são as fake news para a sociedade, na sua opinião?

É um problema mundial provocado pela revolução digital, que transforma cada pessoa do planeta em uma espécie de jornalista ao divulgar notícias. Hoje, é difícil distinguir as notícias verdadeiras das fake news, vivemos uma espécie de confusão extraordinária. Temos de tomar todos os cuidados, pois não é impossível que uma sociedade seja manipulada pelas fake news.

E como a democracia convive com a mentira?

Infelizmente, não é possível existir uma democracia sem mentiras. O mais importante é a existência de uma imprensa responsável, um jornalismo autêntico, honesto, que se dê conta da sua responsabilidade – muito maior hoje em dia, por conta da abundância das fake news. Não acredito que exista no governo democrático outra maneira de combate, porque já sabemos o resultado quando se estabelecem sistemas de censura na América Latina: surgem governos que só defenderam mentiras.

E o que o senhor pensa sobre a autocensura, também muito praticada em países com governos com grande patrulhamento?

É muito importante, para os cidadãos responsáveis, ter coragem de defender a verdade, de não aceitar a censura e muito menos a autocensura. Isso é o princípio do fim em uma democracia. É essencial que os meios de comunicação mantenham sua independência diante do poder. Na América Latina, o populismo surge outra vez, como na Bolívia, com Evo Morales ficando 12 anos no poder à base de fraudes. É uma vergonha.

Sobre seu livro O Chamado da Tribo, que foi recentemente publicado no Brasil, o que realmente motivou a escrita?

Era um livro que eu tinha muita vontade de escrever desde que li Rumo à Estação Finlândia (livro que foi o primeiro a ser editado pela Companhia das Letras), do crítico americano Edmund Wilson, uma obra sobre a ideia do socialismo por meio de seus grandes pensadores, grandes dirigentes políticos, e que termina com a chegada de Lenin à estação Finlândia, em São Petersburgo, pronto para iniciar a Revolução Russa. Desde que li, pensei em fazer algo parecido, mas com o liberalismo. O resultado não foi bem isso – “tribo” seria um grupo de pensadores liberais que tiveram muita influência sobre mim, por isso que se trata de um texto autobiográfico. É a trajetória intelectual e política de sete pensadores em uma época em que eu já vivia o desencanto do socialismo.

O senhor buscou explicar no livro que ideologias contrárias à liberdade veem o liberalismo como seu grande inimigo?

O liberalismo não é uma ideologia, que é uma espécie de religião laica e só admite crentes – em alguns casos, só fanáticos. Liberalismo é um punhado de ideias compartilhadas por pessoas com diferenças de pensamento, como aliás ocorre na sociedade, onde sempre há muita discordância. O liberalismo reconhece que as diferenças devem prevalecer. Por isso, não diferencio liberalismo de democracia. Para mim, o liberalismo deu ideia e consistência de liberdade, além da legalidade, para a constituição da democracia, deu um fundamento econômico muito importante que permitiu que as democracias fossem prósperas, modernas, que pudessem evoluir tanto na área da ciência como na empresarial. Criou ainda condições materiais para o surgimento de uma política social avançada. São ideias fundamentadas na liberalidade e na legalidade. Finalmente, a ideia de que um Estado para ser eficiente tem de ser grande é equivocada. Os Estados grandes são, em geral, ineficientes. O ideal é ser pequeno, mas forte, que garanta a segurança, a propriedade, a liberdade de imprensa e de mercados, ao mesmo tempo em que defenda, de forma sistemática e sem concessões, a liberdade.