FOLHA DE S.PAULO – 14/12/2019

Jaime Spitzcovsky

Ao atravessar períodos extensos da história como uma das mais insistentes manifestações do ódio e da intolerância, o antissemitismo, nos últimos anos, ganhou lamentavelmente novo combustível.


A crise da globalização, iniciada em 2008, voltou a estimular a disseminação de preconceitos e de teorias conspiratórias, com narrativas mitológicas circulando em grupos extremistas à direita e à esquerda.

Ou seja, devaneios antissemitas ajudam a plasmar cartilhas ideológicas distintas. E a crise financeira internacional de 2008 e 2009, responsável pelo fim da chamada fase dourada da globalização, impulsionou a retomada de antigos fantasmas, culminando em mais uma onda de aversão a minorias, entre elas os judeus.

EUA e Alemanha testemunharam mortíferos ataques a sinagogas. Manifestações antissemitas avançaram em diversos pontos do planeta.

O atual capítulo do antissemitismo encontra raízes na crise de 2008 e 2009. Depois de duas décadas de globalização com expansão econômica, o cenário internacional mergulhou em turbulência financeira, evidenciando desequilíbrios acumulados nos anos pós-Guerra Fria.

A crise revelou sobretudo o empobrecimento de setores importantes de classes médias norte-americanas e europeias, com perda de emprego e renda, transferidos para o continente asiático, devido à decolagem econômica capitaneada por China e Índia.

Também ajudou a compor o quebra-cabeças, a partir de 2015, a crise migratória, com a chegada, a solo europeu, de refugiados oriundos sobretudo de Síria e Iraque.

O empobrecimento de classes médias nos EUA e na Europa gerou uma onda antiglobalização, empurrada também pela crise migratória. Cartilhas nacionalistas, antes adormecidas, reemergiram.

Em 2016, vieram a aprovação do brexit e a eleição de Donald Trump. Partidos com plataformas anti-imigração se fortaleceram na Europa. Na Alemanha, a extrema direita até conquistou cadeiras no parlamento federal.



Com o pêndulo político à direita, grupos nacionalistas mais radicais e também antissemitas se sentiram estimulados a intensificar a divulgação de teses delirantes. Atacam a globalização como “um complô judaico, implementado pelo judeu cosmopolita e apátrida, empenhado em contaminar as sociedades puras”.

A narrativa antissemita, no entanto, contamina também visões antiglobalizantes de grupos radicais de esquerda. Para eles, a figura mitológica a combater não é a do “judeu cosmopolita e apátrida”, mas a do “judeu banqueiro e explorador, controlador das finanças internacionais”.

O esquerdismo extremado define a globalização como “expansão do poder financeiro e dos bancos internacionais” e encaixa no discurso o estereótipo do judeu endinheirado.

Às vésperas da eleição britânica, judeus do Partido Trabalhista colheram 70 depoimentos e produziram relatório apontando antissemitismo intolerável nas fileiras socialistas.

Testemunhei, em outro momento histórico, a elasticidade ideológica do antissemitismo, ao cruzar da extrema esquerda à extrema direita. Morei em Moscou, como correspondente da Folha, entre 1990 e 1994.

De comunistas chocados com o fim da URSS, ouvia a cantilena de que a perestroika era um complô judaico e antissoviético, financiado por Wall Street.

De anticomunistas, surgia a seguinte narrativa: “combatemos a revolução bolchevique, um complô judaico para destruir a mãe Rússia”.

Em pleno século 21, narrativas mitológicas sobrevivem. Democracia, aplicação de leis contra discriminação e disseminação de conhecimento são ferramentas indispensáveis para o combate ao preconceito.


Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.