FOLHA DE S.PAULO – 28/04/2020

Cecilia Machado

Na sexta (24), a ministra Rosa Weber suspendeu a aplicação da medida provisória 954, que determinava o repasse da relação dos números de telefone, pessoas físicas ou jurídicas, pelas companhias de telefonia ao IBGE. Em sua decisão, a ministra cita possíveis danos irreparáveis à intimidade e ao sigilo da vida privada dos usuários desse serviço.


O uso de dados, especialmente os pessoais, envolve questões éticas e exige cuidado. Mas qual o limite da privacidade como direito absoluto, sem que se ponderem, com os riscos, os possíveis benefícios que o uso deles pode trazer?

Vários países agora discutem, por exemplo, o uso de dados de telefonia móvel para monitorar a rede de contato dos indivíduos infectados pelo novo coronavírus.

China e Coreia do Sul mostraram que o monitoramento incisivo das pessoas foi ferramenta importante no controle da epidemia, ainda que a privacidade tenha se perdido no caminho. O trade-off entre privacidade e vidas é evidente.

Em xeque está a discussão sobre a finalidade do uso da informação pessoal e como possíveis riscos de vazamento ou uso indevido podem ser minimizados. O fiel da balança equilibra riscos individuais e benefícios coletivos.

No pedido feito pelo IBGE, a finalidade do uso dos dados era distinta e específica: coleta remota de dados, via telefone, durante a pandemia. Não seriam solicitados às companhias telefônicas a localização em tempo real dos usuários, as ligações efetuadas por eles ou o conteúdo de suas mensagens.

Com a decretação das medidas de isolamento social, muitas coletas de dados foram interrompidas, justamente no momento em que a necessidade de informações para a tomada de decisões torna-se crítica. O vírus é novo, e seus impactos econômicos e sociais precisam ainda ser conhecidos e estudados.

Fica assim estabelecido que os benefícios eram óbvios, claros e relevantes. E os riscos? Um seria o de que o próprio IBGE usasse as informações com outro propósito, que poderia ter sido minimizado se o instituto tivesse fornecido, com o pedido dos telefones, o plano de uso detalhado deles.

Outro, mais importante, os dados poderiam não estar seguros dentro do IBGE, órgão de estatísticas oficial do país, que goza de credibilidade, estrutura e conhecimento para armazenamento e uso de dados sensíveis, já que gerencia outros inquéritos populacionais com informações pessoais.

Na verdade, o pedido do IBGE revela situação muito mais preocupante sobre a gestão e o compartilhamento de informações entre esferas de governo. A grande surpresa nesse episódio foi a constatação de que o IBGE ainda não tem informações sobre os telefones dos cidadãos e empresas, quando a maioria dos governos do mundo já os utiliza em seus inquéritos remotos, obtidos através de registros administrativos próprios, sem intermédio de companhias de telefonia privadas.

Aqui, a ampla gama de cadastros –como o Cadastro Único, o Cadastro Nacional de Informações Sociais, os registros da Receita Federal, os Censos Escolares– se mostrou insuficiente, seja porque a base não é ampla o suficiente, porque os dados não conversam entre si, ou porque as esferas governamentais não o compartilham.

Se a lei de proteção de dados se aplica com esse rigor ao órgão de estatísticas oficial do país, sem ponderar o benefício que novas informações vão trazer para pesquisas científicas, para a formulações de políticas públicas e a favor das pessoas e da sociedade, é preciso urgentemente repensá-la.

Interpretada em sua forma literal, com foco apenas nos riscos, a proteção aos dados é um impedimento à ciência e ao livre acesso à informação. Cria monopólios e impede a justa contestação de ideias. A Justiça, que deve ser cega, não pode nos deixar em completa escuridão em momento tão urgente.

Cecilia Machado
Economista, é professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV.