FOLHA DE S.PAULO – 25/09/2019

Hélio Schwartsman

A lei pode impedir alguém de dizer a verdade? Em algumas circunstâncias, sim. Médicos e advogados que tenham, em razão de relacionamento profissional, descoberto podres de seus clientes estão legal e eticamente impedidos de divulgá-los. Algo parecido vale para servidores públicos que tenham, em virtude do cargo, tomado conhecimento de informações secretas.


Essas, contudo, são situações especiais, que destoam da regra geral em que a lei não apenas permite como incentiva –e às vezes exige– que as pessoas digam a verdade. Ok, admito que não é tão simples determinar o que é verdade, mas existem ocasiões em que fazê-lo pelo menos não parece uma quimera.

É o caso dos fatos. De um modo geral, ou eles ocorreram ou não –algo em princípio verificável. Acho que também dá para colocar nessa categoria os consensos científicos, com a ressalva de que, em ciência, a tal da “verdade” vem entre aspas e é sempre provisória.

Faço essas considerações a propósito da iniciativa da ministra Damares Alves de pedir que as autoras de uma reportagem sobre aborto publicada na revista AzMina sejam processadas por apologia do crime. O texto não fez muito mais do que reproduzir as recomendações da OMS para o aborto seguro, as quais, por sua vez, só refletem o consenso de médicos sobre a matéria.

Se o Ministério Público levar adiante as ideias de Damares, criará o crime de tradução, já que diversos documentos internacionais trazem essas mesmas orientações. E elas também constam de compêndios médicos. Deveríamos então censurá-los? Ou talvez exigir o CRM de quem deseje comprá-los?

Já era bastante ruim que a administração Bolsonaro desprezasse informações científicas ao elaborar políticas públicas. Se passar também a censurá-las, só nos restará pegar em armas contra o obscurantismo deste governo. O lado bom é que, a depender das autoridades do Executivo, o acesso às armas está garantido.