FOLHA DE S.PAULO – 01/08/2020

SIM –  Prática histérica funciona como aviso: quem ousar discordar será eliminado, Leandro Narloch

NÃO – O verbo não foi pinçado ao acaso: ele revela desejos maiores, Milly Lacombe

|SIM – Prática histérica funciona como aviso: quem ousar discordar será eliminado
Leandro Narloch
Jornalista e autor de ‘Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil’ (ed. Globo) e ‘Escravos, a vida de 28 brasileiros esquecidos pela história’ (ed. Sextante), entre outros

Imagine se um repórter da Folha, depois de ler estudos e entrevistar cientistas, descobre que uma substância usada em cosméticos provoque câncer. Ao propor a reportagem, ouve do chefe: “Este assunto é delicado. Podemos perder anunciantes, deixa pra lá”.

O comportamento do editor, é claro, não seria fiel ao projeto editorial desta Folha. Os leitores esperam que o jornal retrate a verdade sem se preocupar com interesses de empresas.

Pois suponha que num outro dia o mesmo jornalista, depois de ler estudos e entrevistar cientistas, conclua que é um mito dizer que as mulheres ganham 25% menos que os homens para o mesmo trabalho. Ao propor a reportagem, ouve do chefe: “Este é um tema sensível e inconveniente. Vai gerar revolta no Twitter e perda de anunciantes. Deixa pra lá”.

Se a decisão do editor valesse, a atividade jornalística também se curvaria a interesses –neste caso, os do movimento feminista.

A cultura de cancelamento criou um ambiente em que é perigoso discordar de ideias, propostas e até de termos preferidos por minorias identitárias. Quem ousa discordar corre o risco de ser linchado virtualmente, perder o emprego, o patrocínio ou a verba de pesquisa. É um ambiente terrível para o debate aberto e a liberdade de expressão.

O problema é mais grave na ciência. O que garante a superioridade do método científico é o sistema de conjecturas e refutações. Alguém apresenta uma ideia, outros a testam, rejeitam, reformulam ou a comprovam.

No entanto, diante da pressão das minorias identitárias, hoje é politicamente muito vantajoso defender teses que concordem com os ativistas. E é desvantajoso discordar.

Assim, a roda de conjecturas e refutações não gira. Ideias que não passaram pelo escrutínio científico ganham força e motivam políticas públicas com grandes chances de serem tiros no pé.

As universidades, as palestras de eventos empresariais, os canais de TV deixam de ser ambientes de discussão aberta e passam a abrigar “concursos de demonstração de lealdade”, como diz o economista Cameron Harwick. Ganha aplausos e likes quem se mostra mais comprometido com um valor abstrato (“sustentabilidade”, “diversidade”), e não os autores dos melhores argumentos e hipóteses sobre um problema.

Os participantes desses concursos de lealdade se satisfazem com a ideia que mais sinalize virtude e não se preocupam em estudar as questões a fundo. Colam um rótulo abjeto na opinião divergente (“revisionismo”, “defesa de privilégios”, “opinião sem lugar de fala”) e interditam o debate. O cancelamento funciona como um aviso aos colegas: quem ousar discordar será eliminado.

Em defesa dos cancelamentos, costuma-se citar o “paradoxo da tolerância” de Karl Popper. “Devemos tolerar tudo, menos a intolerância”, teria dito o filósofo austríaco. Essa é uma leitura superficial e apressada do que ele afirmou. Popper se referia a incitações evidentes à violência e à censura, não a simples discordância de ideias. Defendia efusivamente a liberdade de expressão e o escrutínio científico.

Também se diz que cancelamento é apenas uma tentativa de “responsabilizar alguém pela forma irresponsável pela qual compartilhou um pensamento”. Aqui vale lembrar o que aconteceu com Demétrio Magnoli, colunista da Folha, numa feira literária na Bahia, em 2013. Por discordar de cotas raciais, Magnoli recebeu manifestantes que atiraram até uma cabeça de porco no palco do debate, que acabou cancelado.

Não estamos lidando com uma sensata responsabilização, mas com um apedrejamento histérico de infiéis.


NÃO – O verbo não foi pinçado ao acaso: ele revela desejos maiores
Milly Lacombe

Escritora e cronista, é roteirista da TV Globo, colunista das revistas Trip/Tpm e autora do romance ‘O Ano em Que Morri em Nova York’ (ed. Planeta)


Não é culpa da liberdade de expressão que tenhamos dificuldade em entender seus limites. Toda a liberdade, a despeito do que nos tenha sido ensinado, exige atenção.

Liberdade não é fazer o que queremos fazer, na hora que bem entendermos, como der na telha. Liberdade é um conceito que envolve prudência, disciplina e respeito pelo outro porque ninguém existe sozinho.

Não é liberdade de expressão desumanizar. Palavras ferem, aniquilam e podem matar. Palavras importam e, como uma arma, precisam ser usadas com muito cuidado. A questão é que vivemos em um sistema que todos os dias vomita em nossas caras que liberdade está associada a poder fazer escolhas. Se fosse isso teríamos um problema sério logo de saída porque a própria experiência de estarmos vivos não nos dá muita escolha sobre morrer ou não.

Liberdade não tem nada a ver com escolhas, nem se trata de conceito individual. Ninguém é livre sozinho, e se a tragédia desse vírus pode revelar alguma coisa talvez seja esta: a de que estamos nos afetando uns aos outros o tempo inteiro.

Ter alguma agência sobre sua vida é ter autonomia, não liberdade. A cultura do cancelamento nasceu dessa confusão conceitual. É perfeitamente possível, e até divertido, cancelar temporariamente uma pessoa sem reduzir sua reputação a pó. Para isso, basta que critiquemos ideias e atitudes, e não a pessoa.

Recentemente, cancelei Ellen DeGeneres em texto que publiquei nesta Folha. Isso não quer dizer que deixe de respeitar sua jornada, especialmente no que diz respeito a ter me ajudado a sair do armário. Hoje, entretanto, suas ideias já não falam mais comigo e se opõem a meus valores. Aqui, nos separamos.

Mas existe uma potência na palavra cancelamento. Numa sociedade em que tudo virou mercadoria e o único poder é o do capital, cancelar é um verbo que impõe respeito, é a defesa do sujeito contra um sistema que só o valoriza enquanto consumidor. Todos e todas que já se lançaram à penosa missão de cancelar algum serviço entendem que só somos vistos quando ameaçamos o cancelamento.

O verbo não foi pinçado ao acaso: ele revela desejos maiores, raivas soterradas que estão sendo, para delírio de quem está no poder, individualizadas e redirecionadas.

O ódio que estamos sentindo não é ao outro ou à alteridade, embora assim pareça, mas a um modo de vida que nos desautoriza e deslegitima enquanto sujeitos. Trabalhar, pagar contas, trabalhar mais, pagar mais contas, morrer. E, no fim do dia, a massa trabalhadora (e por trabalhador entendam qualquer um que precise de emprego e salário para viver, e também as mulheres que trabalham cuidando de suas casas) esgotada, exausta, adoentada. Em nome do quê? De sonhar em passar os últimos anos de nossas vidas num lugar tranquilo e sem poluição, cercados de natureza e do barulho dos pássaros; sonhar em viver como os indígenas de quem tomamos a terra e a quem todos os dias desmoralizamos.

Cancelar é legítimo se entendermos que pessoas são incanceláveis, mas ideias e valores são perfeitamente canceláveis. E que, depois de amanhã, o que foi hoje cancelado pode ser descancelado –porque a vida é movimento.

Assim, a cultura do cancelamento não pode ameaçar a liberdade de expressão. O que ameaça a liberdade de expressão é concentração de riqueza e de poder. Assim como uma sociedade organizada por estruturas racistas, machistas e LGBTfóbicas.