O ESTADO DE S.PAULO – 21/07/2020
DEMI GETSCHKO
Em vários contos da mitologia vê-se que um herói, ao se desincumbir com êxito de uma difícil tarefa, é muitas vezes tomado de exaltação e excede-se em seus atos. Acaba punido pelos deuses. A húbris ou hybris, esse descomedimento, essa autoconfiança excessiva ou arrogância, é a raiz de muitos dos castigos que acabam por se abater sobre os heróis. Na moral antiga, a húbris é uma falha grave de caráter e que acaba por merecer a punição divina, normalmente a cargo de Nêmesis, a deusa da vingança e punição.
Ulisses, o mais sagaz e ardiloso dos gregos no cerco e destruição de Tróia, sucumbiu à húbris e por isso foi condenado a navegar por 10 anos superando um sem-número de provações e tormentas, antes de conseguir voltar a Ítaca, sua terra natal. Ícaro, que ganhou de presente de seu pai um par de asas moldadas com cera, não se contentou apenas em voar mas, ignorando os conselhos do pai, foi para perto do Sol, que derreteu o cera e o fez despencar no mar. Narciso era muito orgulhoso de si e Nêmesis, para destruí-lo, o fez apaixonar-se pela própria imagem…
Será que a Internet reforça em nós essa pulsão pelo egotismo, pelo cultivar de nossa própria imagem? Afinal não é difícil identificar esse apego, quando vemos a quantidade de “selfies”, os autorretratos que tiramos, recebemos e distribuímos ao léu pela rede.
Cuidado! Nêmesis nos punirá com a perda de nossa privacidade, com as eventuais montagens que usarão os retratos para piadas maldosas e associações inadequadas. Outra situação que pode indicar o quanto de húbris prospera na rede é verificar a impensada e rápida redistribuição de tudo o que recebemos, na tentação de ganhar mais visibilidade e presença em grupos das redes sociais que frequentamos. A teia formada por esse novelo de mensagens está longe de ser um “conjunto de informações”. Pelo contrário, parece-se mais com uma “balbúrdia distribuída”.
Os longos ciclos de transmissão de mensagens na rede parecem confirmar a teoria do “eterno retorno”: quantas vezes não acabamos por receber de volta algo que nós mesmos repassamos antes? São esses exemplos triviais, do dia a dia, há porém casos mais perigosos, onde a húbris também pode se esconder…
Podemos, por exemplo, identificar essa armadilha em detalhes do projeto de lei sobre combate a notícias falsas. Sempre que se busca, com a melhor das intenções, atacar um problema ou um comportamento que incomoda ou agride, há o risco de, ao se exagerar na dose, causar danos colaterais impensados. Agir com descomedimento pode afetar inocentes, ou exagerar na dose de punição a eventuais culpados. Pode-se estar incorrendo em húbris.
E se houver húbris ao trilhar o caminho em direção à meta, Nêmesis poderá nos punir tirando-nos liberdades, condenando-nos a uma Internet mutilada, ou, simplesmente, fazendo-nos apaixonar pelo próprio autoconforto.
As salvaguardas para escapar da húbris são simples: basta ouvir a todas as vozes que possam e queiram opinar sobre o tema. Parece ser esse o caminho que o PL2630 toma ao evoluir na Câmara: diversas audiências públicas pautarão os passos a serem dados. Que ele seja um caso claro de sofrósina, o oposto de húbris, e que significa moderação, prudência e sanidade moral.