O GLOBO – 13/10/2019

PEDRO TINOCO 

O Brasil era uma democracia. Com a deposição de Getúlio Vargas, o país havia acabado de se livrar do totalitarismo do Estado Novo (1937-1945) quando o decreto 20.493 foi promulgado, em 24 de janeiro de 1946. Seus mais de cem artigos, repletos de recomendações sobre vigilância e punições, em capítulos intitulados “censura prévia”, “cinema”, “teatro”, “radiofonia” e “artistas”, duraram um bocado: serviram de base legal para a rotina de perseguição da ditadura militar, a partir de 1964, e chegaram com força surpreendente aos anos 1980, em plena abertura.


A vitalidade da repressão às ideias na sociedade brasileira, em tempos de paz ou de arbítrio, é uma das revelações de “Herói mutilado: Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura”. No livro, Laura Mattos, jornalista da “Folha de S. Paulo”, parte de históricos embates do dramaturgo Dias Gomes (1922-1999) em defesa de sua obra para desenhar um painel mais amplo das ameaças à liberdade de expressão no Brasil. Já incensado por “O pagador de promessas” (a adaptação da peça para o cinema conquistou o Festival de Cannes em 1962), Dias Gomes escreveu “O berço do herói” em 1963. Na trama, um ex-combatente da Segunda Guerra é dado como morto e elevado a mito por seus conterrâneos. Sua volta à terra natal, vivo e com passado nem tão heroico, contraria interesses diversos. Em 1965, após assistir a um ensaio geral na véspera da estreia (ritual detalhado no capítulo IV do decreto 20.493), o censor vetou o espetáculo. Começava ali uma longa batalha. Em 1975, Dias Gomes desenvolveu uma versão do texto em forma de telenovela, para a TV Globo, rebatizada como “Roque Santeiro”. Com 30 episódios já gravados, o folhetim foi impedido de ir ao ar. Outra versão, para o cinema, não saiu do papel. Só junho de 1985, com o fim do regime militar, estreou na faixa das 20h da Globo uma nova produção de “Roque Santeiro”, escrita por Gomes e Aguinaldo Silva. Foi um sucesso retumbante, com picos de 80% no Ibope, mas sofreu cortes em mais da metade dos seus 209 capítulos.

— A atualidade do Dias Gomes é de arrepiar – diz Laura Mattos. – Na novela de 1985 há cenas em que o Roque (José Wilker), aparece para a população, mas ela não o vê. Não quer ver. Quando se trata alguém como mito, fica difícil enxergar o todo em seu entorno. No trabalho de apuração e pesquisa para o projeto, que primeiro resultou em uma tese de mestrado na Escola de Comunicações e Artes da USP, a autora entrevistou contemporâneos e familiares de Dias Gomes, teve acesso a um diário inédito escrito por ele entre 1959 e 1962 e leu documentos como as 432 páginas dedicadas ao autor pelo SNI, o Serviço Nacional de Informações instituído na ditadura. — Fui entendendo que a prática da censura é um tiro no pé. O veto à novela em 1975 fez com que esse aspecto da repressão, antes assunto restrito à intelectualidade, a um círculo menor, caísse na boca do povo, que naturalmente acabou simpático à liberdade de expressão. – explica a jornalista. – A ditadura acreditava que estava segurando a opinião pública, mas o combate à censura uniu as forças de oposição.

Laura começou a estudar o tema em 2011, de início atraída pela ideia de escrever uma biografia de Dias Gomes. Entrou no mestrado em 2014, ajustou o foco da pesquisa e, dois anos depois, concluiu o curso impressionada com a aproximação entre as histórias do livro e o que anda acontecendo hoje.

— Há uma tentativa de dividir a censura entre a política e a de moral e bons costumes. Não devemos fazer essa diferenciação. Toda censura é política – diz Laura Mattos. – A caça aos quadrinhos na Bienal do Livro, a censura nas atrações da Caixa Cultural ou a cartilha escolar recolhida pelo governo de São Paulo são atos de governantes em defesa da moral de suas bases eleitorais. Eles sabem que, se outra moral tiver espaço, as correntes que a defendem ganham força.

AUTOR COMBATIVO

As desventuras de Dias Gomes, militante do Partido Comunista e menos afeito a temáticas açucaradas do que sua mulher, a também autora de novelas Janete Clair, foram além de “Roque Santeiro”. A queda de braço com a censura estendeu-se a outras criações, como “A ponte dos suspiros” (1969), sua primeira novela para a Globo, e a clássica “O bemamado” (1973).

O escritor nunca esmoreceu. Em entrevista de 1966, citada no livro, deixou o seguinte recado: “A época em que vivemos é de angústia, apreensões e até delações. Temo que os ódios ultrapassem as fórmulas da paz. (…) Considero essencial a liberdade de qualquer ação para podermos debater, sempre, mesmo com rispidez, nossas ideias e pensamentos”.

Aideia foi ótima: contar a ação da censura no Brasil em três momentos diferentes, mas sobre uma mesma obra. Os períodos são o do começo da ditadura militar, o do país sob o tacão do AI-5 e o do início da redemocratização. A obra é a fábula de Roque Santeiro, criada pelo dramaturgo Dias Gomes e vetada como peça de teatro (“O berço do herói”) em 1965, proibida como telenovela (“Roque Santeiro”) em 1975 e, enfim, exibida, ainda como telenovela, em 1985, mas com uma série de cortes. A ideia foi da jornalista Laura Mattos, que transformou em livro sua tese de mestrado em comunicação social. Dias Gomes. Autor na mira da ditadura O resultado é “Herói mutilado — ‘Roque Santeiro’ e os bastidores da censura à TV na ditadura”, que está chegando às livrarias. O livro também ficou ótimo. Apesar de seu interesse estar focado no período entre 1965 e 1985, a autora volta até o tempo do Império para mostrar que, de um jeito ou de outro, a censura sempre rondou a cultura no país. Entre 1843 e 1864, por exemplo, existiu um certo Conservatório Dramático Brasileiro cuja função era examinar todas as peças apresentadas na Corte para que fossem preservadas “a moral e os bons costumes”. A partir daí, a censura sempre foi utilizada pelos governos, independentemente de ideologias, para garantir a permanência no poder. “O berço do herói”, a obra que deu início à trilogia censurada, é inspirada num episódio verídico narrado por Euclides da Cunha em “Os sertões”. Na peça, uma cidade tem que enfrentar os problemas que causam a aparição, vivinho da silva, de um morador considerado morto numa atitude heroica. A volta do suposto herói ameaça o turismo e a indústria da cidade, que vive do culto à sua memória. O protagonista é um soldado brasileiro que, na verdade, tinha desertado na Segunda Guerra e desaparecido por uns tempos. A peça foi escrita em 1963, tempo de ventos democráticos, mas só foi montada em 1965, quando a ditadura militar já estava em ação. No dia da estreia, alegando que o texto “induzia ao desprestígio das Forças Armadas” (onde já se viu um soldado desertar?), a temporada prevista para acontecer no Teatro Princesa Isabel, no Rio, foi cancelada.

O livro é repleto de informações de bastidores da ação da censura, como o diálogo, quase surreal, travado entre Dias e um censor, quando este foi informado de que o autor faria uma comunicação à plateia sobre a proibição do espetáculo. “— O senhor não pode fazer isso.

—Por quê?

— Porque a peça não está proibida.

—Como assim?

—A peça não foi liberada. —E não é a mesma coisa? —Não.

—Qual é a diferença se, de qualquer forma, não podemos encená-la? —A diferença existe. Pode ficar certo de que existe.” Enquanto acompanha a trajetória acidentada de “Roque Santeiro”, o leitor tem a chance de conhecer o perfil de seu autor, que serve como exemplo de um tipo de artista que parece não existir mais. Laura Mattos conseguiu um diário inédito, cedido pela viúva de Dias, a atriz Bernadete Lyzio, e que o dramaturgo manteve na década de 1950, justamente no período em que escrevia seu maior sucesso teatral, “O pagador de promessas”. Com ele, a autora mostra um escritor que acredita no poder transformador do teatro e na eficiência de um trabalho artístico engajado. Mostra a solidariedade que movia os companheiros, que pensavam da mesma maneira. O diário leva o leitor a entender o teatro que interessava a Dias. Como pode ser visto neste trecho:

“Se escrevemos para o Povo, uma pergunta se impõe: a favor ou contra? Pois não é possível ficar neutro em relação a ele. Como Povo, entendemos massa oprimida. Se lhe apontamos caminhos para livrar-se da opressão, se o armamos contra o opressor, estamos a seu favor; se apenas o distraímos — e por consequência o distraímos da luta — estamos contra ele. Não há neutralidade possível.”

Lendo hoje, o texto parece radical e ingênuo. E é. Mas dá para entender que não foi por acaso que a censura fez tanta questão de calar a voz de Dias Gomes. Ele sempre escreveu a favor do Povo. A censura é que, como de hábito, era contra.