FOLHA DE S.PAULO – 12/05/2019
Lucas Neves
Críticos da medida dizem que iniciativa traz risco à privacidade de internautas.
A decisão do governo britânico de impor uma verificação de idade aos usuários de sites de conteúdo pornográfico tem dividido opiniões no Reino Unido.
A medida, que vigorará a partir de 15 de julho, é vista por entidades de proteção de crianças e adolescentes como necessária para evitar acessos acidentais a material não recomendado para menores.
Já grupos que advogam pela liberdade de navegação online sustentam que a iniciativa traz risco à privacidade de internautas, pois os cadastros criarão uma imensa base de dados que será cobiçada por hackers e chantagistas.
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A implantação do projeto, adiada ao menos três vezes, deverá ocorrer dois anos após a aprovação da lei de economia digital. Estarão sujeitas às determinações fixadas no texto as páginas que forem propagandeadas como pornográficas ou aquelas em que o teor erótico representar mais de 1/3 do conteúdo total —basta “cair” em uma das categorias.
Esses critérios de elegibilidade já explicitam uma primeira fragilidade da legislação: estamos falando de 30% de páginas, imagens, bytes?
Além disso, se os administradores de um site claramente pornográfico o caracterizarem em anúncios como sendo de caráter informativo (sobre práticas sexuais, por exemplo) ou comunitário (com contribuições e supervisão descentralizados), podem em teoria escapar da obrigatoriedade de implantar um sistema de checagem etária.
A verificação online será feita por meio de documentos como passaportes ou carteiras de habilitação. Bancas de jornais e quiosques físicos venderão passes mediante comprovação de maioridade, como costuma acontecer em alguns países com a venda de bebida alcoólica.
A empresa que se recusar a implantar o filtro ficará sujeita a multa e, em último caso, até ao banimento em território britânico.
A diretriz não cobre redes sociais, o que críticos apontam como uma de suas grandes falhas, já que plataformas como Twitter e Reddit são repositórios vastos de material pornográfico —o Tumblr baniu todo conteúdo adulto no fim de 2018.
Will Gardner, diretor-executivo da organização Childnet, que busca criar uma internet “segura” para crianças e jovens, diz que a medida tem o mérito de levar para o meio virtual barreiras já existentes no “mundo real”, como a classificação indicativa para filmes exibidos no cinema.
Os sistemas de verificação de sites pornôs estarão sob a tutela da mesma entidade que controla a censura etária dos títulos convencionais.
“É um começo. Vai inibir a exposição acidental à pornografia”, afirma Gardner. “Não é solução para o problema que identificamos, mas é um passo importante, por mais que seu alcance seja limitado.”
O problema a que ele se refere é o conjunto de resultados de uma pesquisa realizada em 2016 pela Universidade de Middlesex (Inglaterra) com adolescentes da faixa etária de 11 a 16 anos.
Segundo a pesquisa, 28% dos 1.001 entrevistados tinham se deparado com pornografia sem querer (por exemplo, por meio de um anúncio pop-up em um site não erótico), enquanto 19% haviam buscado ativamente o conteúdo.
No cômputo geral, 53% dos jovens tinham visualizado material de natureza explícita na internet —quando o recorte passava a só incluir os de 14 anos ou mais, o índice chegava a 94%.
“O mais alarmante é o dado que mostra o quanto os adolescentes consideram aquilo uma representação realista do sexo [53% dos garotos, 39% das garotas]”, avalia Gardner.
“Quando se pensa no que é boa parte da produção pornográfica hoje, no retrato frequente do sexo como dor e sofrimento para a mulher, acho absolutamente correto proteger crianças do acesso indesejado a isso.”
Organizações de defesa da internet livre e da navegação sigilosa dizem que a regra, inédita em nível nacional, mina a privacidade dos usuários.
Segundo essas entidades, pessoas deixarão de acessar sites pornôs por medo de ter sua identidade associada a buscas por certos conteúdos ou práticas, o que, caindo em mãos mal-intencionadas, poderia ganhar potencial explosivo.
“Vazamentos de dados seriam desastrosos”, afirmou ao Guardian Jim Killock, diretor-executivo do Open Rights Group. “O governo precisa definir os parâmetros de privacidade [dos sistemas de verificação de idade] antes que sua política faça com que preferências sexuais sejam reveladas, carreiras, destruídas, e suicídios, provocados.”
A falta de garantias em relação ao sigilo das informações fornecidas aos dispositivos de controle etário é um dos “pontos cegos” que as sucessivas revisões da norma não conseguiram extinguir.
O birô britânico de proteção de dados vai estabelecer orientações gerais para os desenvolvedores dos sistemas de verificação, mas só as seguirá quem quiser. Ou seja: o governo não terá a prerrogativa de punir quem se desviar dos parâmetros sugeridos. Tudo dependerá da boa-fé das empresas.
“A ideia de que esses parâmetros sejam opcionais é perigosa e irresponsável”, insiste Killock no Guardian. “Você pode ter uma atestação de idade boa, e outras, fracas, o que é injusto e representa um paraíso para golpistas –criado pelo próprio governo.”
Gardner, do Childnet, contra-argumenta. “Uma verificação de idade não equivale a uma verificação de identidade. Quem quiser acessar conteúdo pornográfico será redirecionado a um site independente, em que fornecerá informações que não serão em seguida enviadas à página adulta. Ela só saberá que a checagem foi feita, mas não quem é você.”
Do outro lado da contenda, analistas lembram que pelo menos um grande conglomerado de sites de material explícito possui sua própria firma de atestação de maioridade, o que abriria a porta a um compartilhamento problemático de dados.
Além do debate em torno da privacidade, críticos têm enfatizado a vulnerabilidade operacional do plano. A imprensa britânica mostrou que é possível burlar o filtro de idade em menos de dois minutos, fornecendo, por exemplo, um número falso de cartão de crédito.
Outra opção é usar uma rede privada virtual (VPN, na sigla em inglês), que permite “exportar” a atividade online para outro país, “enganando” servidores e driblando restrições nacionais como a verificação britânica.