O GLOBO

Editorial

Em meio à expectativa que cerca a eleição americana, a novidade mais reveladora não é o favoritismo do democrata Joe Biden. Nem a importância deste ou daquele grupo demográfico para o resultado, nem a voz melíflua e roufenha da boataria digital. O mais notável e decisivo na campanha eleitoral deste ano é o resgate do protagonismo da imprensa profissional.

Se, em 2016, as redes sociais tiveram papel indiscutível na vitória de Donald Trump, em 2020 a história já é outra. Tão hábil quatro anos atrás para explorar as notícias fraudulentas e os ataques ao jornalismo — até a agressão física a jornalistas —, Trump enfrenta este ano uma dificuldade de outra grandeza.

É o que demonstram os eventos envolvendo as denúncias frágeis contra Biden, que jamais alcançaram repercussão comparável a acusações também frágeis sobre os e-mails de Hillary Clinton ou os elos de Trump com russos em 2016. Representantes da campanha de Trump, sob a coordenação de seu advogado Rudolph Giuliani, entregaram ao “Wall Street Journal” um dossiê com acusações de que o filho de Biden, Hunter, se beneficiara da posição do pai, então vice-presidente, quando trabalhava na empresa ucraniana de gás Burisma — e de que o próprio Biden auferira lucros na empreitada.

A publicação por um veículo da grande imprensa era essencial na estratégia de transformar a corrupção atribuída a Biden no tema central do último debate, revelou o colunista Ben Smith no “New York Times”. Só que o “Journal” fez jornalismo e, ao verificar as denúncias, constatou sem esforço sua fragilidade. Como resultado, elas acabaram publicadas no tabloide “New York Post”, associado ao trumpismo, e rapidamente caíram em descrédito.

Sem aval do jornalismo profissional, as próprias redes sociais — Twitter e Facebook — se viram obrigadas a reduzir a repercussão ou barrar as denúncias. Independentemente da controvérsia despertada pela decisão, ela revela que as redes parecem ter enfim se dado conta de que não podem espalhar informações de impacto político sem saber se são verdadeiras. É esse, por sinal, o valor cardeal do jornalismo.

Quando Trump falou sobre o assunto no debate, só a audiência restrita dos sites de desinformação trumpistas sabia do que ele estava falando. A moderadora Kristen Welker não se furtou a exercer seu dever jornalístico e questionou Biden sobre o tema. Assim como o “Journal”, que deu à reportagem não o ar de escândalo que a campanha de Trump desejava, mas pôs em evidência as dúvidas sobre a narrativa.

Para a imprensa, é ao mesmo tempo um aprendizado valioso e sinal de um futuro promissor constatar que sua principal missão e seu maior valor ainda estão em fazer aquilo que sabe fazer melhor: jornalismo.